Maria

🕊️ Carta Aberta — Há Sempre Qualquer Coisa Que Está Mal
Há sempre qualquer coisa que está mal, não é? Quando alguém morre, parece que o mundo não aguenta o silêncio e precisa logo de uma explicação, de uma frase feita, de uma culpa para atirar a alguém. Foi assim com o forcado, disseram que se meteu onde não devia, que ninguém o mandou lá. E agora, com este rapaz de 14 anos, dizem que ia depressa demais, que não tinha idade, que a mota era grande, que devia ter mais juízo.
Mas não é a velocidade que está em causa. Porque mesmo que não fosse depressa, acidentes assim também acontecem — até aos nossos próprios pés, até aos mais cuidadosos, até a quem faz tudo “como deve ser”. A vida às vezes tropeça, sem avisar. E não é justo transformar um momento trágico em lição moral, como se a dor tivesse de vir com um culpado colado.
Mas que raio de mundo é este onde a culpa é sempre de quem já não está cá para se defender? É tão fácil falar quando não se sente. É tão fácil comentar de longe, de ecrã na mão, com a alma gelada e o coração em modo julgamento. As pessoas esqueceram-se de sentir. Esqueceram-se de respeitar. Acham que por dizerem “é triste, mas…” já cumprem o dever moral, como se a dor dos outros precisasse de opinião em vez de silêncio.
Mas ele tinha 14 anos. Catorze. Ainda era um miúdo. Ainda devia estar a rir com os amigos, a sonhar com o futuro, a gozar a vida que mal tinha começado. Um rapaz com energia, com curiosidade, com sede de viver, e que, por um instante, acreditou que podia ser livre. Mas bastou um segundo. Uma curva. Um deslize. Uma noite qualquer em Évora. E o mundo parou para ele.
E em vez de luto, veio o julgamento. Em vez de respeito, vieram os dedos apontados. Em vez de empatia, vieram as bocas frias a repetir as mesmas frases de sempre: “Foi imprudente.” “Foi azar.” “Foi destino.” “Foi culpa dele.”
Mas ninguém diz que a estrada estava escura, que o piso é perigoso, que a sinalização é fraca, que a vida real não é perfeita como nas teorias que as pessoas debitam nas redes. Ninguém pensa que talvez, naquele instante, ele só quisesse sentir o vento na cara, esquecer o mundo por um segundo, viver algo bonito, sem imaginar que seria o último momento dele neste lado da vida.
E mesmo que tivesse sido um erro, quem nunca errou aos 14 anos? Quem nunca se sentiu invencível por um segundo? Quem nunca quis viver um pouco mais depressa do que devia? Mas parece que o mundo se esqueceu de que todos já fomos jovens, inconscientes, sonhadores. Só que a diferença é que muitos tiveram sorte, e ele não teve.
Agora há uma família destroçada. Uma mãe que acorda no meio da noite a pensar que vai ouvir o som da mota a chegar, e o silêncio corta o ar. Um pai que entra na garagem e sente o coração a desabar, porque lá está a mota, parada, calada, como se também estivesse de luto. Há amigos que ainda olham para o telemóvel à espera de uma mensagem, colegas que olham para a carteira vazia na escola e não acreditam. Há um bairro inteiro com um nó na garganta, e ainda assim há quem ache que é altura de apontar o dedo.
É preciso ter coragem para se calar, sabias? É preciso ter coração para não julgar. Mas o mundo perdeu isso. Perdeu o coração, perdeu a humanidade, perdeu a noção do que é dor. Agora é tudo opinião, tudo crítica, tudo julgamento. E no meio disso, esquecem-se de que um rapaz de 14 anos deixou de respirar.
Eu não o conhecia. Não sei o nome dele. Não sei onde exatamente aconteceu. Mas não é preciso conhecer para sentir revolta. Não é preciso conhecer para entender que há famílias que hoje choram um filho que nunca mais vai voltar. Não é preciso conhecer para ter dois dedos de testa e perceber que há coisas sobre as quais simplesmente não se fala.
Porque às vezes, o que o mundo mais precisa é de silêncio. Silêncio para respeitar. Silêncio para sentir. Silêncio para entender que nem tudo precisa de explicação.
Ele não era só mais um. Não era uma manchete. Não era um número nas estatísticas da sinistralidade. Era um rapaz, com sonhos, com alma, com vontade de viver. E o mundo devia curvar-se perante isso. Devia parar, por um momento, e pensar que podia ter sido o filho deles, o irmão deles, o amigo deles.
Mas não. Há sempre qualquer coisa que está mal. E sim, está. Está muito mal. Mas o que está mal não é ele. O que está mal é este mundo frio, que perdeu a empatia. É esta gente que fala sem pensar, que aponta o dedo em vez de estender a mão, que transforma a tragédia em debate e a dor em conteúdo.
Há quem diga que a vida continua. Mas para quem fica, a vida nunca mais é a mesma. Para quem amava aquele rapaz, o tempo parou ali, no som do motor que se calou para sempre. E para quem tem um mínimo de sensibilidade, fica o nó no peito, a revolta, e a certeza de que o mundo anda a precisar de reaprender o que é respeito.
E a vocês, pais, familiares e amigos… não há palavras que cheguem. Não há nada que conforte, nada que cure, nada que apague o vazio que se abriu. A dor de perder um filho, um amigo, alguém tão novo, é uma ferida que não fecha. E ninguém devia passar por isso. Só quero que saibam que, mesmo entre desconhecidos, há quem sinta convosco. Que há quem chore convosco. Que há quem deseje poder devolver o tempo, mesmo sabendo que é impossível.
Não há explicação que sirva. Não há frase bonita que tape a dor. Mas há coração. E às vezes, é só isso que se pode oferecer: um coração que sente convosco, em silêncio, com respeito, com amor. Que a vossa força venha da memória dele, e que o amor que deixou espalhado nunca se apague.
Antes que a tua memória se perca no esquecimento do mundo, quero que saibas, miúdo, que deixaste uma marca. Mesmo quem não te conheceu fala de ti com o coração apertado. A tua história acordou consciências, fez muitos pensarem e mostrou que a empatia ainda existe, só anda adormecida.
Que a tua memória sirva para acordar este mundo que adormeceu na indiferença. E que nunca mais seja preciso outro miúdo partir para as pessoas lembrarem o valor da vida.
Descansa em paz, rapaz.
O céu hoje tem mais um brilho.
E a terra, um vazio impossível de preencher.



Maria José Chaves
Fiquei sem palavras minha querida Beatriz. O meu coração ficou apertadinho porque a tua escrita é sempre emocionante e para quem anda meio adormecido é um alerta para a realidade do Mundo em que vivemos. Parece que o ser humano de humano tem cada vez menos, estamos a perder os valores, o respeito e os bons sentimentos e por vezes até parece que se fica feliz com a desgraça alheia como foi com o azar do jovem Forcado. Não é este o Mundo onde eu nasci e tenho imensa pena quando penso como estará o Mundo quando os meus netos forem crescidos. Parabéns minha querida por teres a coragem de tentar com a tua escrita que os nossos corações consigam ter sentimentos mais nobres. Deus te abençoe e proteja sempre. Um grande beijinho. 😘🌹

1 month ago | [YT] | 0